terça-feira, 3 de junho de 2008

A vida de crianças do Tibete no exílio em território indiano

De Julien Bouissou                                                   image UOL Mídia GlobalUOL Mídia Global
Enviado especial do "Le Monde" a Dharamsala (Índia)
Durante quarenta dias, Legphel atravessou o Himalaia, saindo do Tibete a caminho da Índia, aninhada nos braços da sua mãe. "Ela abraçou-me demoradamente antes de deixar-me, e então seguiu viagem pelas montanhas. Com o tempo, acabei me esquecendo das feições do seu rosto", conta a colegial de 12 anos, com as mãos agarrando firme a saia do seu uniforme.
Desde a sua chegada, há sete anos, ao centro dos refugiados de Dharamsala, a capital do governo tibetano no exílio, Legphel nunca mais recebeu qualquer notícia dos pais. Um dos seus colegas de escola lhe contou que o seu tio vira a sua mãe morrer quando estava retornando a Lhassa. "Mas uma mãe não pode desaparecer assim, desse jeito", acrescenta em voz baixa a jovem refugiada, levantando os ombros para demonstrar sua perplexidade.
Daqui para frente, Legphel estuda a história e a cultura tibetanas numa aldeia que foi organizada especificamente para acolher as crianças exiladas do Tibete, construída no declive de uma montanha, a alguns quilômetros de Dharamsala. Aqui, os 2.100 alunos são chamados oficialmente de "órfãos". Isso não quer dizer necessariamente que os seus pais tenham morrido -muitos deles moram do outro lado dos cumes cobertos de neve que dominam o vale-, mas estes últimos há muito deixaram de transmitir-lhes qualquer sinal de vida.

Reuters

Monges e jovens exilados tibetanos marcham pelos arredores de Dharamsala sob vigilância

Para eles, seria arriscado demais enviar uma carta ou dar um telefonema. Em 2007, 50 jovens refugiados foram forçados a retornar para a casa dos seus pais depois de a polícia chinesa ter descoberto que eles haviam fugido do Tibete. "Com isso, as crianças preferem esquecer-se dos seus pais, em vez de seguirem sofrendo com a sua ausência, mesmo se nem todos eles conseguem apagá-los da memória", reconhece o diretor da escola. De vez em quando, durante a noite, Legphel desperta com a sensação de estar vendo seus familiares, ao lado dela, "muito próximos dos meus olhos".
Entre 700 e 1.200 crianças tibetanas com idades de 6 a 15 anos chegam ilegalmente, todos os anos, à Índia. No decorrer da viagem, elas são entregues pelos seus pais a passadores, a alguns metros de distância dos primeiros postos fronteiriços do Tibete. Ninguém conhece o rosto, nem o nome desses intermediários que preferem permanecer no anonimato, por temerem ser denunciados. Sob a sua proteção, as crianças exiladas empreendem então uma caminhada de um mês, na maioria dos casos no inverno, a estação mais segura para atravessar o Himalaia. "Por causa do frio, os guarda-fronteiras preferem permanecer nos seus abrigos em vez de efetuarem suas patrulhas", explica Dhorjee, o diretor do centro dos refugiados de Dharamsala.
A caminhada é sempre realizada durante a noite e, sobretudo, no mais completo silêncio. Toda e qualquer pedra que venha a cair da trilha pode chamar a atenção dos guardas. Algumas crianças acabam morrendo crivadas de balas ou engolidas por despenhadeiros no interior das geleiras. É impossível saber ao certo quantas delas acabam morrendo nesta aventura todos os anos. Aquelas que conseguem alcançar o centro dos refugiados de Dharamsala são as únicas a serem contabilizadas.

NO EXÍLIO

Entre 700 e 1.200 crianças tibetanas com idades de 6 a 15 anos chegam ilegalmente, todos os anos, à Índia. Ao acolher em seu território refugiados e o governo do Tibete no exílio, ainda que não seja propriamente uma defensora da causa tibetana, a Índia se colocou numa posição ambígua

Esta antiga construção, escondida numa viela entre lojas de suvenires, abriga em meio à penumbra do seu dormitório cerca de cinqüenta camas grudadas umas nas outras. No chão, ao lado de cada uma delas, estão algumas mochilas repletas de roupas próprias para proteger do frio. Neste dormitório, as crianças são ensinadas a lerem biografias ilustradas do dalai-lama e aprendem também a desenhar. Primeiro a bandeira tibetana, e depois os mosteiros budistas. Durante as horas de lazer, quase sempre elas ficam brincando na entrada do edifício, à beira de um muro coberto por fotografias de cadáveres jazendo pelas ruas de Lhassa, a capital do Tibete. Até o dia em que elas recebem a bênção do dalai-lama. Então, logo no dia seguinte, as crianças partem para viver na casa da sua nova mãe, na aldeia tibetana.
As "home mothers" (mães caseiras) são mães profissionais. Após serem formadas durante dois anos em costura, em culinária e na psicologia da criança, elas acolhem os jovens exilados em casas tibetanas construídas com pedras, situadas nas alturas da aldeia. "Ao criar essas crianças dentro do respeito da tradição tibetana, estou salvando o meu país do esquecimento", explica Tsering, uma mãe de 48 anos que cuida da educação de 36 crianças, em sua casa decorada com tapeçarias de mosteiros budistas e com retratos de família do dalai-lama. O seu marido, discreto, não desgruda os olhos da telinha da televisão, na qual estão sendo exibidas as mais recentes imagens de motins provenientes do Tibete.
"Existe apenas uma mãe, aqui; não há nenhum pai", avisa Tsering, dando uma olhada furtiva em direção a um retrato do dalai-lama. Na primeira hora do dia, enquanto os meninos se ocupam regando flores, as "colegiais" penteiam seus longos cabelos pretos do lado de fora da casa, diante da vista do vale. Quando o sino ressoa, centenas de crianças despencam pelas trilhas íngremes que conduzem ao terreno de basquete, o qual é transformado todas as manhãs em terreno de oração. Sentados em tapetes espalhados no chão, com as pernas dobradas, centenas de colegiais repetem, inclinados sobre os seus livros, os mantras recitados pelos monges.
"As crianças vão se tornando tibetanas ao aprenderem a cultura, a história e a religião do nosso país", insiste Karma Trinley, o supervisor da escola. Atrás dele há uma construção cujo muro traz uma inscrição com os dizeres: "Venham para aprender, partam para servir", o que vem a ser o slogan do estabelecimento. Os livros de história e de língua são redigidos pelos próprios professores. O manual de história começa com o capítulo "Tibete e China" e se encerra com o capítulo "Exílio".
Sobre a escrivaninha de Karma Trinley, na qual cada objeto está cuidadosamente colocado, há uma pilha de jornais íntimos que aguardam para serem lidos. As confidências dos alunos, que devem caber numa única página, são lidas diariamente por um professor. Em geral, este costuma dar a prioridade para aquelas que trazem a menção "Por favor, leiam com atenção".
"Nós precisamos detectar os sofrimentos psicológicos da criança antes que seja tarde demais", explica o supervisor. "Hoje estou triste, porque a Sua Santidade está com febre", escreveu um aluno, num texto com data de 18 de março. No mesmo dia, um outro expressa a sua preocupação: "Eu vi tibetanos queimarem os carros dos chineses na televisão. Eu temo pelos meus pais. Eu nada posso fazer para ajudá-los senão aprender a ser uma boa tibetana". Para que ela e todas as outras crianças alcancem esta meta, a escola administra aulas de educação cívica. Nestas é ensinada a Constituição tibetana, que foi redigida em 1960, além de outras regras, entre as quais aquela que manda cada tibetano recolher ao menos 2% do seu salário em benefício do governo no exílio.
"Nós precisamos assimilar com afinco as regras da democracia para estarmos prontos para o dia da independência", resume uma das professoras, que prefere não ter o seu nome revelado. Ela mesma passou a sua infância na aldeia, até o dia em que ela trilhou o caminho de volta, para retornar à casa dos seus pais, no Tibete, alguns anos atrás. "Quando eu vi novamente os seus rostos, as recordações da minha outra vida vieram à tona. Aquilo foi insuportável para mim. Finalmente, eu decidi permanecer na Índia, porque foi aqui que passei a maior parte da minha vida", diz. Quando optou por viver em Dharamsala, a professora acabou elaborando uma justificativa para a sua decisão: "Aqui, eu posso até mesmo ser órfã dos meus pais, mas não do Tibete".
Tradução: Jean-Yves de Neufville

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